Pesquisar este blog

domingo, 18 de maio de 2014

[opinião] O Alienista Alienado

Caricatura de Machado de Assis. Fonte: Pata do Guaxinim


Patrícia Secco tornou-se o centro de uma pequena celeuma, por conta de um projecto em que obras clássicas foram “adaptadas”, notadamente “O Alienista” de Machado de Assis, mas também “A Pata da Gazela", de José de Alencar.

Ao que consta, e tal é, em princípio, a causa maior da indignação (até um abaixo assinado deu origem), as alterações visam trazer o texto para uma linguagem mais próxima da actual. Ou seja, palavras em desuso foram trocadas por outras mais “modernas”, entre outras alterações, como pontuação, construções, etc.

Um dos problemas, mencionado por quem está contra este trabalho, é o facto de que os livros não deixam claro que são fruto de uma adaptação. Ou seja, não está indicado, na capa, que o texto é uma modificação ao texto original publicado pelo autor. Apesar de não ser obrigatório, eu mesmo considero essa ausência como uma atitude de bastante mal gosto. Para não dizer imoral.

Mas o que escapa à maioria das pessoas é, talvez, o cerne da questão.

Qual o objectivo desse projecto?

Segundo Patrícia, o objectivo do projecto não é o de “facilitar a leitura”, mas antes o de “facilitar o acesso”. Segundo ela, há muitas pessoas que não têm acesso ao livro. Simplificar o texto seria apenas uma forma de tentar impedir que as pessoas parassem a leitura por conta da dificuldade em compreendê-lo sem um dicionário ao lado (ou mesmo com ele).

A ideia do projecto, que está sendo custeada por impostos (pelo menos é que eu entendo da lei Rouanet), sendo este outro motivo para a discussão, inclui ainda a distribuição gratuita de 300 mil exemplares do livro “O Alienista”, mais 300 mil exemplares do livro "A Pata da Gazela" e mais 600 mil folhetos com instruções para a leitura.

Infelizmente, ter acesso ao texto não é a mesma coisa que ser capaz de compreendê-lo. Segundo dados do IBGE, 75% da população brasileira tem algum nível de analfabetismo funcional, de mediano a severo (meio a meio). Para estas pessoas, ler um texto mais complexo ou profundo, com muitas nuances e camadas, ainda que adaptado para um linguajar mais simples, está completamente fora do alcance.

Adaptações para a juventude, em que o texto é praticamente “reescrito”, normalmente bastante mais curto que o original, sobrando apenas o corpo principal da história, pode ser uma forma de garantir que “parte” de uma tradição seja passada desde tenra idade. Funciona. A história, na realidade, já está no imaginário popular, e isso desperta o interesse pela leitura. E o gosto, fundamental, desenvolve-se através do exercício da leitura. É lendo que se aprende a gostar de ler. Mas essa táctica só funciona se o “público-alvo” for capaz de compreender o que lê. Quando isso acontece, o jovem leitor, ao desenvolver mais sua capacidade de leitura, acaba por buscar os textos originais. E faz isso porque quer. 

Entretanto, ao adaptar uma obra, como no caso em questão, não importa o motivo, a obra sempre perde algo. E o leitor, portanto, sempre acabe perdendo algo também. Uma obra de literatura não é apenas conteúdo. E mesmo o conteúdo está intimamente ligado à forma. Cada ponto, cada vírgula, cada palavra escolhida pelo autor diz algo. Sobre ele. Sobre a obra. Sobre o tempo em que a obra foi escrita. Ao mudar qualquer coisa no texto original, corre-se o risco de criar um monstro, que passa uma mensagem completamente equivocada.

Livros mais fáceis de ler, ou gratuitos (deviam pensar em inventar a biblioteca…), não vão mudar a situação, porque não é a falta de livro, ou o linguajar, que actualmente mantém a população longe da literatura. 

O que pode mudar esta situação é óbvio: Investir em educação. É dar condições para que todos tenham acesso a um ensino de qualidade, que inclui, entre outras coisas, condições dignas de vida, professores competentes e currículos adequados, multidisciplinares e com leituras apropriadas a cada idade e contexto social. Enquanto esse não for o objectivo imediato da sociedade, e neste momento não é, não vão aparecer leitores, não importa quantos livros você despejar nas cabeças de nossos jovens.

É preciso despertar o interesse pela leitura. É possível. E pode-se fazer com milhares de títulos que andam por aí, sem precisar recorrer a nenhuma adaptação. Mas é preciso ainda mais. É preciso uma estratégia que mostre aos jovens que ler é bom. Que mostre que ler pode dar prazer. Que mostre que ler, muito, pode tornar a vida de uma pessoa mais rica e vibrante. Que mostre. Sem mostrar isso aos nossos jovens e crianças, eles se tornarão mais uma geração de adultos ignorantes. E sem mostrar não se vai lá. Por isso, é melhor o governo investir em uma estratégia que efectivamente consiga atingir o público.

O projecto, se realmente destina-se ao que oficialmente está se propondo, garantir o acesso aos textos dos clássicos brasileiros, e confesso que tenho sérias dificuldades de acreditar nisso, é de uma boçalidade inacreditável. Irá falhar peremptoriamente. Porque no Brasil, a falta de interesse pelos livros não está ligada ao anacronismo da linguagem. Tão pouco à dificuldade de acesso aos livros.
No Brasil, a falta de interesse pelos livros está ligada à ignorância das benesses da leitura. Doação de livros (facilitados ou não), não mudará isso.

É dar nozes a quem não tem dentes.

----
Alguns outros links sobre o assunto:

6 comentários:

  1. Pois é isso. Investir desde cedo em leitura, leitura com compreensão, educar para compreender e ler o mundo à volta. Isso a escola nunca me deu, mas tive a sorte de ter uma família que nunca relegou essa ação de me "letrar" para a escola. E a coisa está cada vez mais complicada, porque as crianças de hoje já são, muitas, filhas de brasileiros que já cresceram em um meio onde não houve acesso pleno a uma boa educação, nem da parte familiar...

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá Bia :)
      No caso da leitura, a família pode ser muito importante, mesmo que ela própria não tenha o hábito, mas consiga perceber a importância. Foi o caso da minha. Meus pais não tinham o hábito da leitura de literatura.
      Mas a escola tem um papel fundamental. Foi da escola que eu tirei meu gosto pela leitura. Mas eu tive sorte. Meus pais sempre buscaram boas escolas, e tiveram essa possibilidade. Estudei um único ano em uma escola municipal, e meus pais foram a correr me matricular em outra, porque simplesmente não dava... rs

      Excluir
    2. Justamente isso. Nem escola, nem família, deve deixar essas ações totalmente para o outro lado. Porque não se lê apenas na escola, ou não se deveria ser assim, pelo menos. Minha família também era mais ou menos como a sua. Minha mãe estudou até 4º ano fundamental, nunca a vi com um livro na mãe, mas incentivava a minha leitura tanto quanto a família do meu pai, que era de leitores habituais. Aqui, a qualidade da escola municipal é bem diferente. Eu dou aula em uma escola municipal desde 2008, e antes disso só tinha lecionado em particulares. Posso te dizer que a municipal dá de vinte a zero em qualidade no ensino, apesar de todas as dificuldades. Se puder, jamais voltarei para a escola particular. ;)

      Excluir
    3. Cada escola é única. Infelizmente, em termos de escolas municipais e estaduais, parece-me que são poucas as que conseguem manter esse nível de qualidade de ensino que você mencionou, Bia.
      O que é uma pena.

      Excluir
  2. Vamos por partes, porque esta noz será difícil de quebrar.

    Você pega o mesmo caso e o aborda por um ângulo totalmente diferente do meu, e descobre ainda mais razões para execrar o projecto (em homenagem aos seus leitores portugueses).

    Em primeiro lugar, o "nuance". Uma obra como Dom Casmurro, por mais que seja edulcorada, nunca será compreendida por nossa juventude porque lhes falta a sutileza para acompanhar -- e mesmo para entender -- o drama de Bentinho. Jovens que não têm leitura, que não acompanham a tradição literária, que não têm conhecimento da história de seu país e de sua gente, esses não podem entender Dom Casmurro. O problema não está no vocabulário e, para além da nuança, está no conceito e no imaginário: os jovens de hoje não conseguirão ter empatia pela paixão inocente de Bentinho e Capitu, não decifrarão a raao da angústia dele diante da possibilidade de traição, etc.

    Segundo, doar livros. Acho perigoso isso. Livros deviam ser baratos, mas deviam ser comprados por quem os queira ler. Livro doado é esmola, não passa em quem o recebe a impressão de valor. Ele não escolheu o livro, recebeu-o por imposição.

    Por isso disse, no meu artigo, que nós, os novos escritores, não servimos para nada, na opinião das editoras. Deveria haver uma geração de novos autores que, com várias gradações de profundidade e qualidade, fariam a entrada do público de hoje na literatura, até eles poderem subir a escada e buscarem Machado de Assis na antepenúltima prateleira (porque na última vai a Demanda do Santo Graal em português medieval e na penúltima estão Camões e seus contemporâneos).

    Entre tais autores o leitor poderia escolher. A escolha valoriza. A doação, não.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá J.G.

      Sobre a questão dos "nuances", concordo e penso exatamente assim. A capacidade de apreciar uma obra tem relação directa com as experiências de leitura anteriores e com a capacidade de compreensão da realidade (e da história).

      Também acredito, cada vez mais, como você, que a entrega gratuita desvaloriza o trabalho e a obra. É uma infelicidade que seja assim, mas só se dá valor ao que é "caro".

      E é como eu comentei no texto. É preciso criar condições para que o gosto pela leitura se desenvolva. Sem isso, doar livros é, na maioria dos casos, perda de tempo.

      A questão dos novos autores é chata. Para as editoras, brasileiras, ao menos, parece que sai mais barato editar autores mortos ou estrangeiros. Uns não reclamam, os outros já tem uma quantidade brutal de propaganda em cima (banda desenhada, cinema, TV...)

      Mas parece que é mesmo isso que quem manda quer... Não?

      Obrigado pelo comentário guri! Abraços!

      Excluir