- Perdão? O que foi que
disse?
- Gostaria de passar, se faz favor
João ainda levou
alguns segundos para perceber o que se passava. Estava bloqueando a
passagem a uma senhora. Afastou-se desajeitadamente. Observou-a
colocar o passe sobre o sensor e a cancela que dava acesso ao Metro
abriu-se. Várias pessoas que já formavam uma fila fizeram o mesmo,
algumas resmungando sobre a “falta de respeito” do senhor que
lhes fazia perder tempo.
Tempo. Quanto tempo ainda tinha?
“Alguns minutos”, pensou. Soltou um suspiro cansado, ombros
caídos.
- Qualquer coisa é melhor do que isso – Sussurrou
para si mesmo.
Esperou que alguém fosse passar a cancela
novamente e aproveitou a “boleia”. Não tinha passe.
Desceu
as escadas em direção à plataforma, sem prestar muita atenção à
sua volta.
Não estava ansioso. Desistira de viver há muito
tempo. Apenas não tivera coragem de aceitar isso.
Depressão,
disseram-lhe. O que sabem os médicos? Nada. Eles não entendem. Não
tem como entender.
Sentia um vazio no peito, tão grande, que
por vezes pensava que ia ser tragado e desaparecer. Hoje era
exatamente o que queria.
O som do Metro fez-se ouvir. João
fechou os olhos. Aproximou-se da faixa amarela que indicava a linha
de segurança. Tudo que queria era que seu sofrimento acabasse. Um
passo e tudo estaria terminado.
- João?
Abriu os
olhos. “Maria?”. Era a voz da Maria. Olhou ao redor. Apenas
algumas pessoas esperavam na plataforma. Nenhuma era ela.
O Metro chegou. João
ficou ali, parado, pensando em Maria. Já não sentia o vazio no
peito. Sentia pontadas, como se alguém trespassasse seu coração
com um grande espeto, muito lentamente.
- O senhor está
bem?
Um rapaz saído do Metro que acabara de chegar notou sua
face pálida. João tremia. Parecia estar prestes a desabar. O
estranho ajudou-o a sentar-se em um dos bancos de espera que existiam
na plataforma. Após alguns instantes, várias pessoas que vieram no
mesmo vagão que o rapaz cercavam João.
- Foi só uma
indisposição. Já estou melhor, obrigado
O rapaz ainda
mostrou-se um pouco em dúvida, mas notando que a cor já voltava ao
senhor que acudira, acabou por ir embora. Os outros seguiram-no.
João
esqueceu-se por completo do que tinha ido ali fazer. “Maria”. Era
tudo em que pensava.
Ao chegar em casa, encontrou-a escura. O
interruptor não funcionava. Acabou por desistir e foi até a
cozinha. Abriu gavetas e portas de armários até encontrar o que
procurava. Uma pequena garrafa de uísque já pela
metade.
Dirigiu-se ao quarto e sentou-se na cama. Por alguns
momentos que pareceram uma eternidade, deixou que o vazio em sua
mente o protegesse da realidade. Perdeu o emprego. Tantos anos de
trabalho jogados fora. Tanto tempo. Tempo. Tempo. Tempo. Seu tempo
havia acabado. Sua vida não valia mais a pena. No fundo, sabia que
já não havia mais nada para ele aqui. E o aqui que ele sentia já
não ser o seu lugar, não se restringia somente às paredes do
quarto, ou mesmo aos becos da cidade onde viveu toda a vida e onde
passava a maior parte do tempo hoje em dia. Era a própria vida que o
asfixiava.
Deixou-se cair na cama.
Ficou ali. Imóvel. Esperando que o vazio, único amigo que lhe
restava, ocupasse seus pensamentos novamente. Esvaziou a garrafa.
Meio embriagado, fechou os olhos e dormiu.
Acordou ainda
estava escuro. Podia ver a luz da rua que se esgueirava por entre as
frestas da persiana e embatia contra o teto. Deu-se conta do perfume.
Um suave aroma a pêssego. “Maria”. Tateou a cama e encontrou sua
pele macia. Virou-se e seus olhares cruzaram-se. Ela sorria.
Acariciou seu rosto. Beijaram-se. Fizeram amor. Maria adormeceu em
seus braços.
Ele tentou manter os olhos abertos. Queria
ficar assim para sempre. Queria que nada tivesse mudado. Queria não
ser tão covarde. Queria ter dito que a amava.
O uísque falou
mais alto. Vencido, acabou por adormecer..
Acordou novamente
já o sol ia alto no céu. Maria não estava mais lá. Um silêncio
opressivo tomava conta da casa. Sentou-se na beirada da cama,
tentando perceber o que tinha acontecido. Viu a garrafa de uísque
caída ao lado da cama. Ainda podia sentir o perfume de Maria.
Vestiu-se e saiu às pressas dali.
Andou a esmo pelas ruas da
cidade. Pensava em Maria sem parar. Sentia que a cada passo o vazio
fechava o cerco ao seu coração. Não suportaria outra noite como
essa.
Quando deu por si, encontrava-se a meio de uma ponte.
Trepou a proteção e passou para o outro lado. Ficou ali, observando
o Tejo. De onde estava, o rio parecia tão calmo, tão convidativo.
Ouviu uma sirene ao longe.
Dali a pouco a GNR estaria ali. Provavelmente seria a divisão de
trânsito. Os motoristas que passavam pela ponte devem ter dado o
alerta. Ou talvez as câmeras de vigilância. Conhecia um sujeito que
trabalhava lá. Às vezes ele contava histórias do pessoal que
parava o carro, abria a porta e saltava. Não lembrou se alguma vez
ele chegou a comentar se algum dos que pulou chegou a sobreviver, mas
tinha certeza que as chances eram muito pequenas.
Sorriu,
divertido. Sentia-se um verdadeiro clichê, prestes a pular de uma
ponte. Mas o vazio era insuportável e a isso ele não achava piada.
Sentiu uma pontada no peito. Seus olhos encheram-se das lágrimas
que por tanto tempo lutaram para fugir.
- João?
Maria.
Sua voz. Seu perfume. Ela achegou-se e abraçou-o pelas costas, de
forma carinhosa. João desatou a chorar, de forma convulsiva. O vazio
tornou-se tão grande que nada mais importava. Colocou uma mão no
bolso e retirou de lá uma aliança, pequena e delicada. Apertou a
aliança no punho fechado. “Maria”.
- Perdão Maria.
Perdão. Já não suporto mais
Deixou-se cair.
O carro
da GNR acabara de encostar, sirenes ligadas.
Os dois policiais
não tiveram tempo sequer de sair da viatura. Nada puderam fazer.
Foram testemunhas do vazio que acabou com a vida de João.
As
únicas.
[Fim]
GNR – Guarda Nacional Republicana
A primeira versão deste texto foi feita para um pequeno desafio em uma comunidade do Orkut (NEB - Novos Escritores do Brasil), em 2009, salvo erro. Uma versão revisada pelo José Geraldo Gouvêa (Letras Elétricas), foi publicada na revista independente de literatura TEXTURA nº 1, em Novembro de 2010, que pode ser encontrada aqui.
Acho que sou o único ser vivo que possui uma cópia impressa dessa revista...
Foi vc quem escreveu este conto, Jauch?
ResponderExcluirFoi sim :)
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