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domingo, 31 de agosto de 2014

[conto] Sonho de uma manhã de verão

(Fonte: Free Picture)
Iniciou o penoso caminho para a  realidade. Sua mente encontrava-se em um estado de torpor, vagueando por um vórtice de vazios, um sedutor mundo feito de um nada profundo e denso. A cada novo despertar tornava-se mais difícil escapar desse lugar.

Acordou de um sono sem sonhos, deixando-se ficar onde estava: um cobertor puído e mal cheiroso, única proteção contra o frio que  transpirava de forma intensa do chão. Manteve os olhos fechados. Hábito. Se fosse possível enxergar em meio ao breu absoluto que permeava o cômodo, alguém menos atento diria se tratar de um cadáver ressuscitado, não de alguém que acabou de acordar.  Apresentava um semblante sereno. Permanecia imóvel.

O patinhar de um animal pequeno  acabou com o transe que há muito tornara-se habitual.

Não sabia se era dia ou noite. Dormia e acordava a intervalos cada vez mais irregulares. Sem coragem de abrir os olhos e sabendo lhe serem inúteis, pôs-se a escutar. No recinto, os únicos sons eram sua própria respiração, tranquila, lembrando um suave ondular, e o ruído das gotas que caiam do teto formando poças no chão, resquícios da chuva que se abatera sobre uma construção já incapaz de contê-la totalmente.

As tábuas na janela preveniam a luz de entrar, mas não conseguiam impedir que uma brisa gélida soprasse para dentro do quarto. Tal qual um deus para os que vivem no limbo, sentia a face ser acariciada pelo ar que trazia ar novo para dentro.

Não sentia o frio.

Só raiva. Uma raiva entranhada tão fundo que com o tempo tornara-se invisível, indistinguível do seu próprio ser. 

Levantou-se de forma mecânica, sem sequer registrar esse pormenor em seu cérebro ainda sufocado pela fragrância do lugar onde nada existia, onde seu ego podia descansar na confortável certeza de não ser ninguém, onde podia se dar ao luxo de não saber o horror que lhe esperava.

Arrastou-se para fora do aposento no escuro, sem se preocupar em embater contra os móveis pelo caminho. Já sabia-o de cor, não precisava ver. De qualquer modo, já não havia naquele lugar mobília suficiente para que alguém precisasse ter cuidado ou luzes que pudessem iluminar o caminho.

Sussurros indistintos trouxeram de volta ao seu pensamento a realidade, ainda que fosse difícil acreditar, mesmo agora, após tanto tempo, que tudo aquilo realmente acontecera.

No fundo de seu ser jazia ainda uma réstia de esperança de poder abrir as janelas e dar de cara com a luz do sol que tanto gostava, senti-lo acariciar seu rosto. Uma esperança ainda mais escondida que a raiva. Dizem que a esperança é a última que morre. Deve ser porque sabe esconder-se onde ninguém a consegue encontrar.

Esperança e raiva, juntas, ocultas de tudo e de todos, lutavam por manter a vida a fluir naquele corpo. Vivia o hoje. Ou, como gostava de pensar quando encontrava um refúgio, um raro momento de lucidez em meio à loucura que engoliu a tudo, seguia em frente por pura teimosia.

Chegou à cozinha e deteve-se à porta. Hesitou. Os murmúrios agarravam seus ouvidos de uma maneira que passavam despercebidos, mas levavam à exaustão. Eram como uma dor suportável mas incessante. Em breve a loucura substituiria a solidão como sua companheira. Sabia disso. De que valia continuar a alimentar-se? Para quê? Por que continuar a prolongar o sofrimento? Sentia o cansaço apoderar-se de cada fibra do seu corpo, como uma amarra que a cada passo tornava-se mais apertada. Os murmúrios continuavam com uma cadência ritmada. Tétricos. Conspirativos.

Não suportava mais. Queria fugir, mas sabia que não havia para onde ir. Sair significava trocar os murmúrios por uma cacofonia que a levaria à loucura em questão de horas. Sabia que ali dentro teria esse mesmo fim, eventualmente.

Fechou os olhos. A escuridão absoluta tornava este ato irrelevante, mas fê-lo mesmo assim. Era incapaz de imaginar o que quer que fosse de olhos abertos. Precisava estar em outro lugar. 

Sonhou com os raios de sol entrando pelas janelas da cozinha numa manhã de domingo muito tempo antes. A luz era magnífica. Já não tinha muita certeza se a luz era como a que agora sonhava,  mas isso já não era muito importante. Fazia bem imaginar a luz assim. Fazia bem sentir o calor que ela carregava consigo para dentro da cozinha. Viu a fumaça do café na xícara sobre a mesa, subindo em suaves rodopios, cortando a luz que banhava tudo.  Deixou que a lembrança de um abraço apertado naquela manhã, o último que sentira, invadisse seu ser.

Tudo estava quieto. Os murmúrios haviam cessado.

Uma lágrima escorreu até o queixo, sem encontrar obstáculos, terminando sua efêmera existência após uma queda silenciosa rumo ao assoalho.
O cansaço, que parecia milenar, conquistou finalmente seus músculos e ossos. Desabou, indo de encontro a parede e, finalmente, ao chão. Com a cabeça pendida, deixou-se chorar copiosamente. Chorava por nada e por tudo. Chorava de cansaço. Chorava de raiva, sim, mas principalmente chorava porque ainda tinha esperança e no fundo sabia-o.

Enquanto esteve ali, com a alma subjugada pela dor, os sussurros voltaram e tornaram-se cada vez mais intensos, quase desesperados, até que seu choro já não conseguia mais abafá-los.

Foi neste momento que a esperança e raiva, que tinham trabalhado de forma sutil ao longo dos últimos meses, finalmente venceram a resignação e o medo. E foi o próprio inimigo quem alimentara ambas, com seus sussurros e murmúrios constantes.

Teve uma epifania.

Ergueu a cabeça e enxugou os olhos ainda úmidos. Reconheceu a esperança e a raiva que agora afloravam em cada poro de seu corpo. Sentiu as forças retornarem aos braços e pernas. Ergueu-se.

Um sorriso aflorou em seu rosto, vindo de algures em suas entranhas. Um sorriso que ninguém podia ver e, entretanto, os murmúrios, que segundos antes cresciam em volume e intensidade tornando-se quase gritos, novamente reduziam-se a sussurros praticamente inaudíveis, com uma tensão que parecia uma mistura de surpresa e curiosidade precavidas.

Caminhou até o balcão da cozinha. Abriu a segunda gaveta a contar de cima para baixo e meteu uma das mãos lá dentro. Ouviu-se o barulho de objetos a chocarem-se enquanto  procurava o que fora buscar. Quando retirou a mão da gaveta, tudo ficou em silêncio. A expectativa tomou conta do ambiente, fazendo frente à escuridão que reinava senhora de tudo. Dir-se-ia que a escuridão tremia sabendo o que havia agora em suas mãos.

Seguiu em direção à mesa e puxou uma cadeira, sentando-se em seguida.

"Ouçam-me! Desejo falar convosco."

Os murmúrios retornaram, ainda mais cautelosos. Pareciam tentar decidir o que fazer. Sentiu que havia conseguido a atenção das vozes. Agora era tarde para voltar atrás.

"Mas quero vê-los."

Os murmúrios cessaram por segundos, como se os donos das vozes estivessem surpresos, para recomeçar de forma apressada e caótica. Abruptamente tudo voltou a ficar em silêncio. Uma única voz elevou-se, não como um murmúrio, mas ainda assim fraca. Uma voz que lembrava apenas vagamente a voz humana.

"Assim seja."

Chegara o momento.

Abriu a mão e colocou sobre a mesa uma vela e uma caixa de fósforos. Pousou a vela sobre um suporte que havia no centro da mesa e que pensara que nunca mais seria usado. Pegou a caixa de fósforos e retirou um de dentro. Sentiu a ansiedade que pairava sobre o ambiente.
Riscou o fósforo e imediatamente acendeu a vela.

Fez-se uma luz débil e trêmula. Ainda assim feria-lhe os olhos, já completamente habituados à escuridão. Manteve-os fechados por um longo tempo, de forma a acostumá-los com a fraca luz que atravessava suas pálpebras. Virou o rosto para o lado, protegendo os olhos com as mãos e experimentou abri-los algumas vezes. Finalmente conseguiu mantê-los abertos e por instantes esqueceu-se do que se passava, observando com maravilha a visão do fogão empoeirado sob a fraca luz da vela.

O tempo ia passando e os murmúrios retornaram, impacientes.

Finalmente criou coragem e virou-se em direção à luz. Sabia o que esperar, mesmo assim, teve um choque.

Elas estavam lá. Sombras. Três no total.

Três impossibilidades tão reais quanto suas mãos, agora pousadas sobre a mesa, a direita em cima da esquerda. Virou o rosto e olhou para trás, procurando em vão sua própria sombra. Nada. Talvez fosse uma das que encontravam-se diante de si agora, ou talvez estivesse vagando pelo mundo que agora lhes pertencia. Será que havia mais alguém vivo além de si?

"Por quê?", disse em uma voz embargada que por pouco não desapareceu antes de conseguir completar a pergunta.

As sombras, translúcidas e pouco discerníveis, não se pronunciaram. Os murmúrios já não estavam lá também.

"Por quê?", repetiu.

Dessa vez a pergunta foi firme e decidida, carregada de uma força oculta mas perceptível que inquietou as sombras. Os murmúrios recomeçaram, muito fracos e cessaram em seguida.

"O que isso importa?", disse novamente a voz que anteriormente havia se pronunciado.

"A mim importa. Por quê?"

Passaram-se alguns momentos antes que a sombra respondesse.

"Retribuição."

Pensou em uma infinidade  de adjetivos pouco agradáveis que queria lançar ao seu interlocutor, mas sabia que isso era perda de tempo. E desnecessário. Ao invés, continuou com suas indagações.

"Como assim?"

"Nós nascemos da necessidade que os seres humanos tinham de evitar a loucura. Nós somos a matéria de que são feitos os sonhos. De certa maneira, você pode dizer que nós costumávamos ser os vossos sonhos. Vocês nos criaram e condenaram-nos a viver em um plano de existência onde não há nada. Só o vazio. Alimentavam-se de nossa energia, sugando-nos como vampiros sem consciência. Condenaram-nos a não ser nada além de sombras vagando por um limbo eterno. Cada um de nós amarrado a um dos seus. Sempre uma sombra a seguir cada passo vosso. Mas o tempo passou. Vocês esqueceram-se de nós. Só tivemos que esperar que os cadeados de nossa prisão ficassem fracos o suficiente para nos libertarmos."

A voz calou-se por instantes e então arrematou:

"Vocês são os únicos culpados do destino que tiveram."

Pensou que se as sombras tivessem rostos, poderia ver o ódio que sentiam. Quase sentiu pena por elas. Mas esse ódio que elas nutriam por si e que foram a ruína da civilização não era maior do que a sua própria raiva por tudo que elas fizeram.

Lembrou do choque ao levantar um dia e perceber que já não tinha uma sombra, das pessoas gritando, do caos, das mortes. Lembrou da família, levada à loucura. Lembrou do filho, ainda pequenino, com os olhos vidrados, já sem vida. Sentiu uma dor aguda no peito, que durou apenas uma fração de segundos.

Sorriu e seu sorriso fez com que os murmúrios voltassem a ser ouvidos. As sombras à sua frente, cópias incompletas dos seres humanos, agitaram-se.

"Adeus."

Seu rosto estava novamente sereno.

Fechou os olhos uma vez mais, sem se preocupar em apagar a vela.
As sombras precipitaram-se sobre a mesa em sua direção, mas já era tarde. Guinchos e gritos ensurdecedores sufocaram o ar. Em questão de segundos estava tudo terminado.

Deixou-se ficar sobre a cadeira durante um bom tempo ainda, sonhando. Em seu momento de desespero percebeu, enfim, de onde vinha o poder das sombras e de como as podia derrotar. Sonhar acordado. Sonhar com o firme propósito de manter a lucidez. Essa era a chave.  Ao fim do sonho, o mesmo que tivera alguns momentos antes, levantou-se e caminhou em direção às janelas. Abriu-as todas, deliciando-se com a luz da manhã, sem se importar com o frio que fazia.

Atrás de si, a luz do sol projetou o impossível. Onde um dia estivera uma sombra e por tanto tempo não houve nenhuma, agora estavam três.

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